Raquel Montero - Advogada em Ribeirão Preto

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A FAVELA, O COVID-19, E O QUE VIROU SOMBRA NO DESTINO

18/05/2021

Foto: Reprodução

 

 

O crescimento desigual do Brasil vem, desde a abolição da escravatura, perpetuando hierarquias sociais. No cenário de hierarquias temos, em outro extremo da balança, as favelas brasileiras, onde moram pessoas privadas da presença do Estado e dos serviços públicos, onde a violação do direito à cidade é constante. E agora, nessas mesmas favelas, o contágio pelo Coronavírus é constante. Dados de Maio de 2.020 já apontavam que só as mortes contabilizadas nas favelas do Rio de Janeiro já somavam óbitos superiores ao de 15 estados brasileiros.

 

Favelas são o habitat de milhões de brasileiras e brasileiros sem opção para morar de outra forma (ou alguém escolhe viver em favela?). Favelas existem em decorrência de um processo de urbanização desigual e demais desigualdades sociais. É o reflexo contundente e categórico do conjunto dessas desigualdades. É também o reflexo e o resultado de governos incompetentes.

 

Na tentativa de não vê-las ou escondê-las, bem como, de esconder o resultado de governos incompetentes, é comum que elas existam nas periferias das cidades, locais afastados de tudo e de todas as pessoas. Se pudessem, a maioria dos governos não a permitiriam nem nas periferias, mas como eles não têm como esconder essas pessoas em outro lugar, e em algum lugar essas pessoas têm que morar, deixam que elas "existam", ou, "sobrevivam", nas periferias. Essa foi a saída encontrada para esconder essas pessoas e ao mesmo tempo esconder as mazelas que evidenciam uma urbanização desigual e uma má gestão governamental.

 

Todavia, as farsas não permanecem por muito tempo. Como já registrado na História, "se pode enganar todas as pessoas por um tempo, se pode enganar algumas pessoas o tempo todo, mas, não se pode enganar todas as pessoas o tempo todo".

 

Como continuar ignorando as favelas agora, que elas são um espaço de contágio rápido e crescente pelo Coronavírus? Como continuar ignorando que pessoas que vivem nas favelas são também as mesmas pessoas que fazem parte da classe trabalhadora que movimenta as engrenagens da economia do País? São pessoas que vivem nas favelas as mesmas que limpam as casas e cuidam das crianças das famílias da zona sul, outro extremo da cidade.

 

Foi ignorado até agora, mas, em tempo de mais de 435 mil mortes no Brasil ocasionadas pelo Coronavírus, como continuar ignorando que apenas 39% das moradias brasileiras têm acesso a tratamento de esgoto, segundo dados de 2013 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)? Como continuar ignorando que nas favelas nem esgoto encanado tem, o que dirá tratado?

 

Como ignorar agora que a principal medida, a mais eficaz, segundo as autoridades médicas e sanitárias, para combater o contágio pelo Coronavírus, é o isolamento, e como falar de isolamento nas favelas, com famílias de cinco pessoas que dividem um mesmo cômodo?

 

Como uma crônica ou ironia, como profetizado pelo psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung, "o que se quis ignorar virou sombra no destino". Poderosas e poderosos governantes, com o poder nas mãos para governar, há tempos vêm ignorando a existência dessas pessoas e relegando-as às periferias das cidades, onde elas ficam desprovidas da presença do Estado e do acesso a direitos fundamentais para uma existência digna, até que foram vencidas/vencidos, olha só, por um ser microscópico, que não só escancarou incompetentes governantes como igualou todas as pessoas, ricos e pobres, no risco de contaminação. Na ausência de governos democráticos, tivemos um vírus democrático.

 

Raquel Montero, Advogada, Especialista em Administração Pública pela USP

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