Raquel Montero - Advogada em Ribeirão Preto

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A ignorância é a droga mais pesada que existe

02/02/2021

Foto: Reprodução

 

 

"Nada a temer senão o correr da luta. Nada a fazer senão esquecer o medo. Abrir o peito à força, numa procura. Fugir às armadilhas da mata escura." Versos que se tornaram emblemáticos na voz de Milton Nascimento cantando "Caçador de Mim".

 

E caçar a nós mesmos nos remete àquele que deveria ser o nosso constante e maior objetivo na vida, o mesmo repetido por Sócrates há mais de dois mil e quinhentos anos; buscarmos o autoconhecimento para evoluirmos cada vez mais em todos os aspectos.

 

Nessa busca, que está cheia de alegrias e tristezas, de perdas e conquistas, de críticas e aplausos, cada pessoa age de um jeito, reage, e algumas conseguem ser a esperança equilibrista dos versos de João Bosco e Aldir Blanc, que se equilibra nas cordas bambas da vida, outras, nem tanto, e encontram ou sentem mais dificuldades para se equilibrar diante das adversidades da vida.

 

 Ambos os casos, no entanto, estariam dentro da trilha da evolução, onde cair não é o que importa, mas, sim, se levantar sempre que cair e persistir na caminhada, já que não existe caminho pronto para ninguém, ele se faz ao caminhar, como declamou inspirado o poeta espanhol Antônio Machado.

 

E para os males existenciais das pessoas, o mercado, na sua gana e na sua sanha por lucro (e tanto faz se esse lucro causar a desgraça de outras pessoas), tratou de criar panacéias mirabolantes, estas, sim, com alto potencial equilibrista para todas aquelas pessoas que não conseguiram se equilibrar. O problema é que o equilíbrio que esses produtos trazem é fugaz, falso e com alto poder de dependência e destrutivos efeitos colaterais na mente, no emocional e no corpo humano.

 

A vida está cheia de histórias sobre isso. Uma delas, recente e loquaz, é a do talentoso ator Fábio Assunção. E o depoimento dele traz, ainda, um choque na hipocrisia que prega que "drogas" são só aquelas que a lei diz que são "ilícitas", como a maconha e a cocaína, e maldizem e depreciam as pessoas que fazem uso dessas drogas, e as outras, como o álcool vendido em bebidas nos botecos da periferia e nos restaurantes da zona sul, o açúcar presente em diversos alimentos e cuja a origem bioquímica é a mesma do álcool (a cana de açúcar), o cigarro de tabaco que contém nicotina vendido em supermercados,  e os calmantes ou benzodiazepínicos, como o Frontal, o Rivotril, a Sertralina, o Prozac, vendidos em qualquer farmácia, só porque a lei diz que são "lícitos", não são "drogas".

 

As drogas lícitas causam o mesmo mal ou mais mal que as drogas ilícitas, provoca dependência química e efeitos colaterais no organismo humano, a diferença entre elas é que umas são lícitas e outras ilícitas, mas todas são "drogas", e as drogas lícitas tem a agravante de serem liberadas e estimuladas socialmente. Dentre exemplos podemos citar o açúcar e o álcool, são lícitos, mas...

 

O excesso de açúcar faz o pâncreas produzir muita insulina e desencadeia efeitos colaterais no corpo, dentre eles a liberação de cortisol,  ansiedade e irritação. O álcool, embora socialmente e moralmente aceitável, e lícito, é a droga mais pesada que existe e que ainda leva à violência.

 

Tal afirmação foi feita no depoimento de Fábio Assunção recentemente à imprensa; "O álcool é a droga mais pesada que conheci". E o ator disse isso após ter sido dependente de cocaína e crack.   

 

Explicou o renomado médico Drauzio Varella que o cigarro de tabaco, que contém nicotina, é uma "droga" pior que a "maconha" e que causa mais dependência do que o "crack" (Programa Roda Viva em Fevereiro/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lupK2fBHDIg). Porém, liberado e estimulado socialmente.

 

O depoimento de Fábio é confirmado por especialistas. A médica psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva diz que considera o álcool a droga mais pesada que existe. "Se me perguntarem qual droga é mais pesada entre todas as outras, como cocaína, maconha, bala, MDS ou álcool, eu respondo álcool" (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-rNggMZlNWA). Ana Beatriz é referência nacional no tratamento de transtornos mentais e de personalidade, já contribuiu com estudos e pesquisas para a revisão e propositura de leis penais, prestou assessoria para a construção de personagens emblemáticos da teledramaturgia, é membro da Academia de Ciências de New York, é autora de diversos livros, é autora da cartilha Antibullying do Conselho Nacional de Justiça.

 

A psiquiatra explica que " 'droga' é tudo que entra no organismo e leva o organismo a liberar dopamina. "Liberar", e não a "produzir". Dopamina é uma substância que dá a sensação de prazer imediato, de êxtase, e isso cria no cérebro uma sensação tão prazerosa que faz com que a pessoa vá querendo mais, e quanto mais droga a pessoa usa, menos dopamina o organismo vai liberando, o que faz com que a pessoa vá aumentando a quantidade da droga e a utilizando cada vez mais. Por isso que a droga vai levando a dependência química. Tudo que tem esse processo da pessoa precisar ingerir cada vez mais a substância para ter prazer, é uma 'droga' ".

 

E não é justamente esse prazer imediato que o álcool e o açúcar provocam nas pessoas? São drogas, portanto. Quanta hipocrisia, ignorância e falso moralismo, né?!

 

Essa hipocrisia, ignorância e falso moralismo se constata no mercado e, de forma geral, na sociedade, inclusive, em agentes públicas/públicos responsáveis por fiscalizar a aplicação da lei e defender o interesse público, como promotoras/promotores de justiça que representam o Ministério Público, e juízas/juízes que representam o Poder Judiciário na função de aplicação da lei e realização da justiça e do bem comum.

 

É comum vermos no Judiciário a repressão e discriminação por parte dessas/desses agentes à pessoas usuárias ou dependentes de drogas ilícitas como se essas pessoas fossem menos que as outras pessoas que consomem drogas lícitas, e como se essas pessoas fossem a própria causa da existência das drogas na sociedade.

 

Pertinente que se indague o que essas/esses agentes, que se prestam a essa repressão sobre as drogas ilícitas, fazem para combater as drogas lícitas, como o álcool, o açúcar, os ansiolíticos ou calmantes, e sobre as quais causam os mesmos ou mais males que as drogas tidas como ilícitas.

 

E combater não no sentido da punição, mas no sentido de contribuir com a reflexão das causas que levam ao uso e dependência dessas substâncias e das consequências disso, bem como, no sentido de contribuir na elaboração e execução de políticas públicas que possam propiciar reais oportunidades e condições para as pessoas viverem bem, sem recorrer a drogas e a falsos profetas. É preciso destruir a hipocrisia e a ignorância.

 

Raquel Montero

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