Raquel Montero - Advogada em Ribeirão Preto

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Privatizar é a solução para a qualidade no serviço?

28/07/2020

 
Em leilão na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, em 1.998, comemoração pela venda de empresa do Sistema Telebras.
Foto: Reprodução/Rosane Marinho/Folha Imagem
 
 
 
 
O Governador do Estado de São Paulo, João Dória, do PSDB, desde que foi eleito em 2.018, declarou que quer privatizar tudo que puder no Estado de São Paulo[1]. E, nesse sentido, um tempo depois declarou que tem mais de 220 projetos de desestatização, dentre eles, a principal estatal paulista, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP)[2]. Além da SABESP, fazem parte do pacote privatizante de Dória, projetos ferroviários no Vale do Paraíba e na região de Campinas, e, também, a venda de 20 aeroportos regionais.
 
Em âmbito nacional, Paulo Guedes, o Ministro da Economia do governo do Presidente da República Jair Messias Bolsonaro (sem partido), anunciou, no início de 2.019, primeiro ano do governo para o qual foi nomeado ministro, que quer vender as principais estatais federais brasileiras para ter um retorno de cerca de R$ 75 bilhões de reais[3].
 
Quando, na década de 90, o Banco Mundial incentivou a privatização de serviços básicos, entre os quais o de fornecimento de água, os resultados foram desastrosos. Peguemos como exemplo a Bolívia. Após a privatização houve um grande aumento de preços, que levou à uma grande queda no consumo de água tratada. A maioria da população retornou a formas primitivas de coleta de água, como armazenamento de água da chuva em baldes ou lençóis estendidos em varais e perfuração de poços amadores. As empresas reagiram à essas práticas pois o consumo de seu produto, e, por conseguinte, o lucro, foram afetados, e reagiram por meio da aprovação de leis proibindo tais práticas de coleta de água, inclusive,  com o uso de força policial. Essa situação levou a uma forte revolta da população e ao caos no país, no qual mães eram ameaçadas por coletar água da chuva para saciar a sede de seus filhos[4].
 
Apesar das experiências com resultados negativos que temos na história, o Presidente Jair Bolsonaro quer privatizar também a água no Brasil. O Projeto de Lei nº 4.162 de 2.019, de autoria do Poder Executivo Federal, que facilita a privatização de empresas estatais de saneamento básico, foi aprovado pela Câmara e pelo Senado.
 Ambos, Governador João Dória e o Ministro Paulo Guedes, fundamentam as privatizações que querem fazer com base em lucros que a venda das empresas estatais traria e com base em melhor funcionamento dos serviços sob gestão do setor privado. Tais defesas também são utilizadas, de modo geral, pelas pessoas que defendem a privatização como caminho para esses objetivos, transformando, assim, a privatização como solução para trazer mais faturamento para o País e mais qualidade no serviço prestado.
 
Mas a privatização leva mesmo à esses resultados? Qual serviço público que foi privatizado melhorou ao ser privatizado? O modelo estatal não está, mesmo, de forma generalizada, levando à esses resultados? Se há problemas na empresa estatal, assim como existem aos montes nas empresas privadas, o certo a ser feito é resolver o problema na empresa ou descartar a empresa junto com o problema? Quando se lava o bebê, descarta-se o bebê junto com a água suja ou só descarta a água suja?
 
Um outro fundamento utilizado para a privatização de empresas estatais seria a corrupção ocorrida em algumas delas. Mas corrupção também ocorre, aos montes, em empresas privadas, e temos notícias disso. Então, o certo não seria eliminar os maus gestores ao invés de eliminar o patrimônio público que eles administraram mal? Eliminar o patrimônio público em razão da má administração dos gestores seria estar culpando o patrimônio pela má administração feita pela pessoa que o administrou, quando, ao revés, se deveria culpar a pessoa que o administrou. 
 
Inicialmente, empresa estatal não tem que dar lucro, ela tem que cumprir sua função constitucional, cumprir bem e sem causar prejuízo. Mesmo assim, sem ter que dar lucro, estatais brasileiras vêm dando lucro, e de forma progressiva.
 
Como explicado, o Ministro Paulo Guedes quer vender algumas das principais estatais federais brasileiras pelo valor de R$ 75 bilhões. Tal valor corresponde ao faturamento que elas tiveram em apenas um ano. Isso porque, no ano de 2.018, os resultados líquidos dos cinco principais conglomerados estatais federais que temos no Brasil, que congregam boa parte das 154[5] sociedades empresárias estatais que possuímos em nível federal, Petrobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), tiveram um faturamento de cerca de R$ 71,5 bilhões[6], e o Ministro Paulo Guedes quer vender algumas dessas estatais por cerca de 75 bilhões. Então, o Ministro Paulo Guedes quer vender as principais estatais, com o fundamento principal de ter lucro com a venda de empresas estatais, por um valor correspondente ao que elas deram de lucro em apenas um ano. Não parece uma medida sensata.
 
Em 2.017 o conjunto de estatais federais teve um resultado líquido de R$ 25,2 bilhões[7]. E como mencionado acima, isso melhorou em 2.018. Em 2.019 o resultado líquido das estatais federais foi de R$ 109,1 bilhões, representando um aumento de 53% com relação ao lucro das estatais federais em 2.018 e o maior valor de faturamento desde 2.008[8].
 
Com esses resultados por que querer vender um patrimônio que está dando lucro, sobretudo quando ele não tem a obrigação de dar lucro, eis que não é seu dever? E com os mesmos resultados, como usar de fundamento "ter lucro" com a venda das empresas estatais se lucro elas já estão dando? É lucro mesmo vender um patrimônio pelo valor correspondente ao que ele proporcionou de faturamento líquido em um ano?
 
 O outro fundamento utilizado para a defesa da privatização, como fez o Governador João Dória no Estado de São Paulo e o Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é o de que o serviço não funciona bem e não é bem prestado estando sob gestão pública, sendo melhor administrado e prestado com melhor qualidade sob gestão privada.
 
Nesse sentido, peguemos como exemplo, a titulo de comparação, a SABESP, que faz parte do projeto privatizante do Governador João Dória.
 
 A SABESP existe desde 1.973. É uma sociedade de economia mista do Estado de São Paulo, uma empresa estatal estadual, portanto. A SABESP atua no Estado de São Paulo fornecendo água e fazendo a coleta e o tratamento de esgoto, atendendo, atualmente, 367 dos 645 municípios paulista. Trata-se da maior empresa de saneamento da América e a quarta maior do mundo em termos de população atendida (27,9 milhões de pessoas atendidas).
 
A SABESP é responsável por 27% do investimento em saneamento básico feito no Brasil[9]. Em razão da segurança e da rentabilidade a longo prazo, há, na SABESP, investidores do mundo todo, desde fundos soberanos de Cingapura e Emirados Árabes, até fundos de pensão brasileiro. A Sabesp não recebe um centavo do governo, se mantendo através do dinheiro que vem das tarifas dos serviços que presta[10].
 
O que se verifica das informações é que a SABESP está tendo um bom desempenho, e não um mal desempenho, o que contesta os fundamentos utilizados para privatizá-la, no entanto, o Governador João Dória quer privatizá-la mesmo assim. 
 
 Em um outro exemplo temos as telecomunicações, também comumente utilizadas como resposta à pergunta; "Qual serviço público se tornou melhor ao ser privatizado?". No entanto, em pesquisa que realizei entre os anos de 2.004 à 2.019, totalizando 16 anos analisados, foi possível constatar que a empresa privada de telefonia OI (fixo/celular) constou como empresa mais reclamada do Brasil no cadastro geral do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (SINDEC), por vários anos, inclusive, alguns anos consecutivos, totalizando 12 listas anuais de um total de 16 listas anuais ocupando o primeiro lugar como empresa mais reclamada do Brasil, e, com exceção do ano de 2.011, todas as demais listas anuais de empresas mais reclamadas do Brasil tiveram como empresa mais reclamada, empresas de telecomunicações.
 
SINDEC se trata de um sistema informatizado da Secretaria Nacional do Consumidor, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que foi criado para sistematizar e integrar a ação dos Procons do Brasil com o objetivo de criar um arcabouço de informações e dados para subsidiar a elaboração e implementação de políticas públicas na defesa das consumidoras e dos consumidores. Com essa finalidade o SINDEC é um sistema informatizado que registra os atendimentos individuais prestados a consumidoras e consumidores que recorrem aos Procons de todo o Brasil[11].
 
A conexão e articulação entre os Procons dos municípios gera informações que são concentradas nos bancos de dados dos Procons estaduais e repassados para a base nacional de dados do SINDEC.
 
Com base neste banco de dados do SINDEC, a pesquisa realizada entre os anos de 2.004 à 2.019 constatou, também, que nos 10 (dez) primeiros lugares da listagem das empresas mais reclamadas do Brasil, quatro a cinco colocações nas 16 listas anuais são ocupados por empresas privadas de telecomunicações.
 
A telefonia fixa e a telefonia celular, competindo com serviços essenciais, constou como o assunto mais reclamado na maioria das 16 listas anuais, alternando, a telefonia fixa e a telefonia celular, ora uma, ora outra, entre o primeiro, o segundo e o terceiro assunto mais reclamado nas 16 listas anuais, e, ora uma, ora outra, figuraram em primeiro lugar na classificação de assuntos mais reclamados por 09 listas anuais de um total de 16 anos de listas anuais.
 
A área de telecomunicações, abrangendo todas as modalidades - telefonia fixa, telefonia, celular, tv por assinatura e internet (produtos e serviços) - e competindo com áreas de serviços essenciais, alternou entre o primeiro, o segundo e o terceiro lugar de área mais reclamada nos 16 anos de listas anuais, ficando por 04 (quatro) anos no primeiro lugar das áreas mais reclamadas, por 04 (quatro) anos no segundo lugar das áreas mais reclamadas e por 08 (oito) anos no terceiro lugar das áreas mais reclamadas.
 
Esses resultados dos serviços de telecomunicações, pós-privatização dos serviços, representam boa qualidade nos serviços prestados ou melhoria na qualidade dos serviços prestados? É possível fazer essa afirmação com base nesses resultados?
 
E assim, na pesquisa feita sob o enfoque das reclamações sobre serviços e produtos prestados nas relações de consumo e registrados nos Procons do Brasil, e após, consolidadas na base de dados do SINDEC, a privatização, como alternativa à melhor ou mais qualidade na prestação do serviço ou produto, em substituição às empresas estatais, demonstrou não garantir e atingir essa finalidade para a qual ela foi colocada como caminho ou alternativa, ou, quase que como uma panacéia ou cura. 
 
Raquel Montero


[1] ASSIS, Francisco Carlos de; WETERMAN, Daniel. "Vamos desestatizar tudo que for possível", diz Dória em posse. Terra. 01/01/2019. Disponível em: [https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/vamos-desestatizar-tudo-que-for-possivel-diz-doria-em-posse,e0543df29dfc84e11722bc8b427441b26580dbm9.html]. Acesso em 14/04/2019.
[2] SOUZA, Marcos de Moura. Dória diz que já tem 220 projetos de privatização. Valor. Minas Gerais, 12/02/2019. Disponível em [https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/02/12/doria-diz-que-ja-tem-220-projetos-de-privatizacao.ghtml].Acesso em: 14/04/2019.
[3] MÁXIMO, Welton. Em Davos, Guedes se compromete a zerar déficit orçamentário este ano. Agência Brasil. Brasília, 23/01/2019. Disponível em: [https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-01/em-davos-guedes-compromete-se-zerar-deficit-orcamentario-este-ano]. Acesso em: 14/04/2019.
[4] SHIVA, Vandana. A Guerra por Água: Privatização, poluição e lucro. São Paulo: Radical Livros, 2006.
[5] Brasil. Ministério da Economia. Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais. Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados. Boletim das Empresas Estatais Federais, Número 13, Período: 4º Trimestre de 2.019. Brasília, 2019, pág. 05. Disponível em: [https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletim-das-empresas-estatais-federais/arquivos/13a-edicao-boletim-das-empresas-estatais-federais.pdf]. Acesso em: 23/07/2020.
[6] Ibidem.
[7] OTTA, Lu Aiko.Estatais "top 5" têm lucro de R$ 60,7 bi no 1º semestre. Valor. Brasília, 17/09/2019. Disponível em: [https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/09/17/estatais-top-5-tem-lucro-de-r-607-bi-no-1o-semestre.ghtml].Acesso em: 09/07/2020.
[8] Brasil. Ministério da Economia. Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais. Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados. Boletim das Empresas Estatais Federais, Número 13, Período: 4º Trimestre de 2.019. Brasília, 2019, pág. 05. Disponível em: [https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletim-das-empresas-estatais-federais/arquivos/13a-edicao-boletim-das-empresas-estatais-federais.pdf]. Acesso em: 23/07/2020.
[9] Sabesp. Perfil. Disponível em: [http://site.sabesp.com.br/site/interna/Default.aspx?secaoId=505]. Acesso em 28/05/2020.
[10] Ibidem.
 

[11] Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Publica. O que é SINDEC. Brasília. Disponível em: [https://www.justica.gov.br/seus-direitos/consumidor/sindec]. Acessado em: 02/04/2020. 

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