Raquel Montero - Advogada em Ribeirão Preto

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Uma justa e histórica reparação

20/02/2020

Foto: Reprodução/Jornal de Piracicaba
 
 
 
 
Uma justa e histórica reparação. É esse o sentimento trazido pelo julgamento que acaba de ocorrer no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em um caso de flagrante abuso de poder e absurdamente inconstitucional no qual atuei como advogada da vítima. Um dos casos mais absurdos e injustos em que trabalhei como advogada.
 
O fato ocorreu em 2.012 na Câmara Municipal de Piracicaba, município do interior do Estado de São Paulo, local que deveria sempre recepcionar as pessoas do povo, de maneira igual e sem discriminações, porém, não foi assim que ocorreu em Piracicaba. O fato, de tão absurdo e deplorável, repercutiu nacionalmente no País.
 
No dia 29 de outubro de 2.012, por volta das 19h30m, Régis, a vítima e o autor da ação judicial movida contra o município de Piracicaba, ação na qual atuei como advogada de Régis, estava na Câmara Legislativa de Piracicaba para, como um cidadão qualquer do povo, assistir à sessão que então se realizava lá. Ocorreu que, por ordem do Presidente da Casa, na época, Vereador João Manoel dos Santos, Régis foi expulso do recinto porque se recusara a levantar para acompanhar a leitura da Bíblia, ato religioso que, por disposição do Regimento Interno da Casa, inicia as sessões. Régis foi retirado a força por Guardas Municipais e Policiais Militares que o pegaram pelos braços e o arrastaram, retirando-o do recinto da Câmara onde estava ocorrendo a sessão legislativa.
 
Se a obrigação da leitura da Bíblia já é uma norma inconstitucional prevista no Regimento Interno da Câmara de Piracicaba, embora haja no Regimento Interno essa previsão, ao mesmo tempo, inexiste no Regimento Interno  ou em qualquer outra norma da mesma Câmara, dispositivo que determine que esse ato seja acompanhado em pé. Portanto, a expulsão ocorreu por puro arbítrio do então Presidente do Legislativo local.
 
 
A partir daí, não bastando a expulsão, a quase totalidade dos vereadores pôs-se a atacar moralmente Régis durante a sessão legislativa que se realizava. Vários foram os parlamentares que subiram à tribuna da Câmara para repudiar o ato de Régis e para o ofender moralmente, como se pôde constatar nas imagens juntadas aos autos do processo e que são provenientes das câmeras de segurança da Câmara e das imagens produzidas pela própria imprensa.
 
Régis foi retirado à força por Guardas Municipais e Policiais Militares que o pegaram pelo braço e o arrastaram para fora da sessão legislativa que estava acontecendo, como se Régis tivesse praticado algo errado, teve violado o seu direito a liberdade de consciência e de crença e foi privado do exercício de sua cidadania e de seus direitos políticos ao ser expulso da sessão legislativa sob pretexto religioso.
 
O art. 19, inciso I da Constituição Federal (CF), determina;  "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvado, na forma da lei, a colaboração de interesses públicos;"
 
Essa norma estabelece o que se chama de "Estado Laico", ou seja, o Estado não adotará uma religião oficial, para não privilegiar ou desprestigiar nenhuma, mas, sim, respeitará a existência de todas, e respeitará e preservará o direito a todas as crenças e religiões, bem como, respeitará o ateísmo. E assim sendo, tanto é vedado ao Estado impor uma determinada religião, como também lhe é proibido determinar como esta ou aquela religião será praticada.
 
Dessa forma, o fato atentou contra os direitos fundamentais de Régis, consagrados no artigo 5º da CF, especificamente nos incisos VI e VIII do art. 5º: "VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;"
 
Como manifestou Régis à época, "sua conduta naquele dia não configura combate a religiões ou a manifestações religiosas. Absolutamente! O fato é que o pluralismo, que a CF indica ora entre seus fundamentos (art. 1º, inciso V), ora entre seus objetivos (art. 3º, incisos I e IV), somente pode ser alcançado se o Estado não manifestar predileções por esta ou por aquela religião."
 
Diante desse abuso de poder e inconstitucionalidade Régis moveu ação judicial contra o Município de Piracicaba com o objetivo de responsabilizar os autores do fato através do reconhecimento e da declaração do Poder Judiciário de que o ato praticado pelo então Presidente da Câmara foi inconstitucional e arbitrário, e assim, que o fato fosse reparado através de indenização por dano moral praticado contra Régis. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ministério Público Estadual e Ministério Público Federal, além de entidades e movimentos sociais, se manifestaram contra o ato do Presidente da Câmara, alegando inconstitucionalidade e abuso de poder no ato.
 
Na última segunda-feira, 17.02.2020, a inconstitucionalidade e a arbitrariedade foram reconhecidas e confirmadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, em segunda instância, pela sua 4º Câmara de Direito Público, por unanimidade no julgamento que contou com 03 (três) desembargadores, julgou procedente a ação e condenou o Município de Piracicaba pelo fato praticado pelo então Presidente da Câmara Legislativa, determinando que seja paga indenização por dano moral à Régis, na forma, como constou do próprio julgamento, simbólica e cidadã buscada por Régis na ação judicial.
 
Em parte do julgamento unânime consta o seguinte trecho: "É clara e inequívoca a ilegalidade do ato do presidente da sessão legislativa que, diante da recusa do autor de acompanhar a leitura da bíblia em pé, determinou que fosse ele retirado da assistência do plenário da Câmara de Vereadores. O ato em questão constitui clara violação do regramento constitucional que institui o estado laico e respeitador da liberdade de culto do cidadão, e contém em si o germe do abuso de poder. Note-se que o autor exerceu mera resistência passiva ao ato abusivo, e nada no seu comportamento de afirmação de supremacia da Constituição pode ser interpretado em seu prejuízo."
 
O julgamento fez justiça e uma reparação histórica, é mais um precedente da posição do Poder Judiciário brasileiro diante do que estabelece a nossa CF e os valores e direitos envolvidos no caso. Diante do caso, o Judiciário cumpriu a Constituição Federal, respeitou o Estado Laico, respeitou a liberdade de crença e religião e respeitou o exercício, por parte das pessoas, de sua cidadania e de seus direitos políticos independentemente de ter religião, e tendo, de qual seja seu credo, crença ou religião.
 
Nos tempos em que estamos vivendo de Governo Bolsonaro, com retiradas, redução e destruição de direitos humanos e sociais, essa decisão judicial tem um simbolismo ainda maior, pois carrega em si um alento de esperança em dias melhores, e um alento na essência das instituições, que é perene, como perene deve ser a esperança.
 
Raquel Montero
 
 
 
O processo em que ocorreu o julgamento é público e pode ser acessado por qualquer pessoa no site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (http://www.tjsp.jus.br/) através do número do processo 3012189-13.2013.8.26.0451 
 

Links da imprensa sobre o fato ocorrido;
 
 
 
 
 
 
 
 

  

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